NEUROCIENTISTA E ESCRITOR BRITÂNICO OLIVER SACKS, REMONTA TRADIÇÕES JUDAICAS DE SUA VIDA EM TEXTO

Oliver Sacks remonta tradições judaicas de sua infância em texto

OLIVER SACKS
ESPECIAL PARA O ‘THE NEW YORK TIMES’
Oliver Sacks, neurologista e autor de livros como “Um Antropólogo em Marte”, morreu neste domingo em sua casa em Nova York, aos 82 anos, de câncer. Sacks ficou conhecido por livros de divulgação científica nos quais tratou de problemas neurológicos com base em casos reais de seus pacientes.
Neste texto –último escrito pela autor, no dia 06 de agosto, para o “NYT”–, ele rememora as tradições judaicas ortodoxas em que cresceu, sobretudo a do shabat, o dia do descanso. O médico neurologista e escritor repassa sua vida à luz das tradições das quais se afastou, por temor ao preconceito subjacente à religião, e de como recentemente havia reencontrado a paz da infância.
O SÉTIMO DIA DA SEMANA, OU DA VIDA
Minha mãe e seus 17 irmãos tiveram criação ortodoxa; todas as fotos do pai deles o mostram usando um quipá, e me contaram que ele acordava se o quipá caía de sua cabeça à noite. Meu pai também era de família ortodoxa. Meu pai e minha mãe tinham muita consciência do quarto mandamento (“Lembrarás e respeitarás o dia do shabat”), e o shabat (ou “shabbos”, como dizíamos à nossa moda lituana) era completamente diferente do resto da semana. Não era permitido qualquer tipo de trabalho, não se podia dirigir carros ou usar o telefone; era proibido acender uma luz ou o fogão. Sendo médicos, meus pais faziam exceções. Eles não podiam tirar o telefone do gancho ou evitar completamente a possibilidade de dirigir: precisavam estar disponíveis para atender pacientes, se fosse preciso, para operar ou fazer partos.
Vivíamos numa comunidade judaica bastante ortodoxa em Cricklewood, na zona noroeste de Londres. O açougueiro, o padeiro, a mercearia, a quitanda, a peixaria, todos fechavam suas portas para o shabat e não as reabriam até a manhã do domingo. Todos eles e também nossos vizinhos, imaginávamos, deviam festejar o “shabbos” mais ou menos como nós.
Por volta do meio-dia da sexta-feira, minha mãe se despia da identidade e roupa de cirurgiã e se dedicava a preparar “gefilte fish” e outras iguarias para o “shabbos”. Logo antes do anoitecer ela acendia as velas rituais, murmurando uma prece com as mãos em volta das chamas. Todos nós vestíamos roupas limpas e nos reuníamos para a primeira refeição do shabat. Meu pai erguia seu cálice de prata de vinho e cantava as benções e o “kiddush”. Depois da refeição, ele nos liderava na prece de agradecimento pelos alimentos.
Na manhã do sábado, meus três irmãos e eu seguíamos nossos pais até a sinagoga de Cricklewood, na Walm Lane. Era uma “shul” (sinagoga) enorme construída nos anos 1930 para receber parte do êxodo de judeus vindos do East End na época. Quando eu era menino, a “shul” vivia lotada, e todos tínhamos nossos lugares designados, os homens no térreo e as mulheres –minha mãe, diversas tias e primas– no andar de cima; quando eu era garotinho, às vezes acenava para elas durante o serviço religioso. Embora eu não entendesse o hebraico do livro de orações, adorava o som do idioma e apreciava especialmente ouvir as velhas orações medievais sendo cantadas, lideradas por nosso “hazan” maravilhosamente musical.
Depois do serviço religioso, todos nos encontrávamos e conversávamos diante da sinagoga. Geralmente caminhávamos de lá até a casa de minha tia Florrie e seus três filhos, para dizer um “kiddush”, acompanhado por vinho tinto e pãezinhos de mel, justamente o suficiente para estimular nossos apetites para o almoço. Depois de um almoço frio em casa –”gefilte fish”, salmão poché, gelatina de beterraba–, as tardes de sábado, se não fossem interrompidas por ligações médicas de emergência a meus pais, eram dedicadas a visitas de família. Tios, tias e primos nos visitavam para tomar o chá da tarde, ou nós os visitávamos; todos morávamos perto uns dos outros, a distâncias que podiam ser percorridas a pé.
A Segunda Guerra dizimou nossa comunidade em Cricklewood, e a comunidade judaica na Inglaterra como um todo perderia milhares de pessoas nos anos do pós-Guerra. Muitos judeus, incluindo primos meus, emigraram para Israel; outros para a Austrália, o Canadá ou os Estados Unidos; meu irmão mais velho, Marcus, se mudou para a Austrália em 1950. Muitos dos que ficaram assimilaram ou adotaram formas diluídas e atenuadas de judaísmo. Nossa sinagoga antes lotada foi ficando mais vazia a cada ano.
Cantei minha parte no meu bar-mitzvá em 1946 diante da sinagoga relativamente cheia, incluindo várias dezenas de parentes meus, mas, para mim, isso marcou o fim da prática judaica formal. Eu não aderi aos deveres rituais de um judeu adulto e fui ficando mais indiferente aos hábitos e crenças de meus pais, ainda que não tenha havido um ponto de ruptura até meus 18 anos. Foi então que meu pai, perguntando sobre meus sentimentos sexuais, me obrigou a admitir que eu gostava de meninos.
“Nunca fiz nada”, disse. “É só um sentimento. Mas não conte à mamãe. Ela não vai aceitar.”
Mas ele contou e, na manhã seguinte, ela desceu com uma expressão de horror no rosto e gritou comigo: “Você é uma abominação. Eu queria que você nunca tivesse nascido”. (Sem dúvida pensando no verso de “Levítico” que diz: “Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com mulher, ambos terão praticado abominação: certamente serão mortos; o seu sangue será sobre eles”.)O assunto nunca voltou à baila, mas as palavras de minha mãe me fizeram odiar a capacidade de preconceito e crueldade da religião.
Depois de me formar médico, em 1960, abandonei abruptamente a Inglaterra, a família e a comunidade que tinha ali e fui para o Novo Mundo, onde não conhecia ninguém. Quando me mudei para Los Angeles, encontrei uma espécie de comunidade entre os levantadores de peso de Muscle Beach e também com meus colegas residentes de neurologia na UCLA, mas eu ansiava por algum vínculo mais profundo –algum “sentido”– em minha vida, e acho que foi a ausência disso que me levou à dependência quase suicida de anfetaminas na década de 1960.
Minha recuperação começou, lentamente, quando encontrei trabalho em Nova York, num hospital para doentes crônicos no Bronx (o Mount Carmel, sobre o qual escrevi em “Tempo de Despertar”). Meus pacientes me fascinavam, me preocupava muito com eles e sentia quase como uma missão relatar suas histórias –relatos de situações virtualmente desconhecidas do grande público e, de fato, de muitos de meus colegas, histórias quase inimagináveis.
Eu tinha descoberto minha vocação, e mergulhei nela obstinada e concentradamente, com pouco incentivo de meus colegas. Quase sem ter consciência disso, me tornei contador de histórias em uma época em que a narrativa médica estava quase extinta. Isso não me dissuadiu, pois eu sentia que minhas raízes estavam nos grandes estudos de caso neurológicos do século 19 (e eu me sentia incentivado nisso pelo grande neuropsicólogo russo A. R. Luria). Era uma vida solitária, mas imensamente satisfatória, quase monacal, que eu levaria por muitos anos.
Nos anos 1990, conheci um primo meu, Robert John Aumann, homem de aparência notável, com porte atlético e forte e longa barba branca que o fazia parecer um sábio idoso, mesmo aos 60. Ele é um homem dotado de grande poder intelectual, mas também de grande calor humano e ternura, além de um engajamento religioso profundo “”na verdade, “engajamento” é uma de suas palavras favoritas. Embora ele defenda a racionalidade na economia e nos assuntos humanos, para ele não há conflito entre razão e fé.
Ele insistiu que eu tivesse uma mezuza sobre minha porta e me trouxe uma de Israel. “Sei que não acredita, mas deveria ter uma ainda assim”, falou. Eu não me opus.
Em uma entrevista notável de 2004, Robert John falou de seu trabalho com matemática e a teoria dos jogos mas também de sua família, de como costumava esquiar e escalar montanhas com alguns de seus quase 30 filhos e netos (um cozinheiro kosher os acompanhava, levando panelas) e da importância do shabat para eles.
“A observância do shabat é muito bela”, ele disse, “e é impossível sem ser religioso. Não se trata sequer de melhorar a sociedade –é uma questão de melhorar nossa própria qualidade de vida.”
Em dezembro de 2005 Robert John recebeu um Prêmio Nobel por seus 50 anos de trabalho fundamental para a matemática. Ele não foi um convidado muito fácil para o comitê do Nobel, pois foi a Estocolmo com sua família, incluindo muitos dos filhos e netos, e todos tiveram que ter pratos, utensílios e alimentos kosher, além de roupas formais especiais, sem misturas biblicamente proibidas de lã e linho.
Naquele mesmo mês descobri um câncer em um olho e, enquanto estava internado para tratamento, no mês seguinte, Robert John foi me visitar. Ele contou muitas histórias divertidas sobre o Nobel e a cerimônia em Estocolmo, mas fez questão de dizer que, se tivesse sido obrigado a viajar num sábado, teria recusado o prêmio. Seu compromisso com o shabat, com sua paz e sua distância absoluta das questões mundanas, teria pesado mais até que um Prêmio Nobel.
Em 1955, aos 22 anos, fui a Israel por vários meses para trabalhar num kibutz, e, embora tenha gostado, decidi não voltar. Apesar de muitos de meus primos terem se mudado para lá, a política do Oriente Médio me perturbava, e eu desconfiava e que me sentiria deslocado em uma sociedade tão religiosa. Mas, na primavera de 2014, quando soube que minha prima Marjorie –uma protegida de minha mãe que, médica como ela, tinha trabalhado até os 98 anos– estava perto da morte, telefonei para ela, lá em Jerusalém, para me despedir. Sua voz soou inesperadamente forte, o sotaque parecido ao de minha mãe. “Não pretendo morrer agora”, disse. “Faço cem anos em 18 de junho. Você vem?”
“Sim, é claro!”, disse. Quando desliguei, percebi que, em segundos, tinha revertido uma decisão tomada quase 60 anos antes. Foi uma visita puramente familiar. Comemorei o 100º aniversário de Marjorie com ela e a família extensa. Vi dois outros primos que me foram caros em meus tempos de Londres, inúmeros primos de segundo grau ou mais distantes e, é claro, Robert John. Senti-me abraçado por minha família como desde a infância não sentia.
Eu tinha tido certo receio de visitar minha família ortodoxa com meu namorado, Billy “”as palavras de minha mãe ainda ecoavam em minha cabeça–, mas ele também foi recebido calorosamente. Ficou muito claro quanto as atitudes tinham mudado, mesmo entre os ortodoxos, quando Robert John convidou a Billy e a mim para dividir a refeição inicial do shabat com ele e sua família.
A paz do shabat, de um mundo que para, de um tempo fora do tempo, era palpável; tudo se embebia dela, e eu me senti dominado pela saudade e me perguntando “e se”: e se A, B e C tivessem sido diferentes? Que tipo de pessoa eu poderia ter sido? Que tipo de vida poderia ter vivido?
Em dezembro de 2014 completei minha autobiografia, “Sempre em Movimento”, e entreguei o manuscrito ao meu editor, sem ter ideia de que dias mais tarde eu descobriria que tinha câncer metastático, resultante do melanoma que tivera em meu olho nove anos antes. Fico feliz por ter conseguido concluir meu livro de memórias sem ter conhecimento disso e de, pela primeira vez na vida, ter conseguido fazer uma declaração plena e franca de minha sexualidade, enfrentando o mundo abertamente, sem mais culpa e segredos trancados dentro de mim.
Em fevereiro senti que precisava ser igualmente aberto em relação a meu câncer e ao fato de estar diante da morte. Eu estava no hospital quando meu ensaio sobre isso, “Minha Vida”, foi publicado no “New York Times”. Em julho escrevi outro texto para o jornal, “Minha Tabela Periódica”, em que o cosmos físico e os elementos que eu amava ganharam vida própria.
Agora, enfraquecido, com falta de ar, com meus músculos antes firmes desgastados pelo câncer, vejo meus pensamentos centrados cada vez mais não no sobrenatural ou espiritual, mas no que significa viver uma vida boa e que vale a pena –conquistar um sentimento de estar em paz comigo mesmo. Percebo meus pensamentos vagando em direção ao shabat, o dia do descanso, o sétimo dia da semana e, quem sabe, também o sétimo dia de nossas vidas, em que podemos sentir que nosso trabalho foi feito e que já podemos descansar com a consciência tranquila.

Fonte:http://www.substantivoplural.com.br/oliver-sacks-remonta-tradicoes-judaicas-de-sua-infancia-em-texto/

A morte do escritor e neurocientista Oliver Sacks


SEG, 31/08/2015 - 08:44

Morreu, aos 82 anos, o neurocientista e escritor britânico Oliver Sacks, vítima de um câncer. Sacks foi autor de bestsellers e usava experiências pessoas e clínicas para escrever sobre a mente humana.
Ele alcançou grande popularidade, notadamente nos Estados Unidos, onde vendeu mais de um milhão de livros. Em seus livros, tratava doenças neurólogicas com humor, como no "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu", uma coleção de 24 estudos de caso.
Enviado por Maria Carvalho
Da Deutsche Welle
 
por Jan Bruck 
 
O neurocientista e escritor britânico morreu aos 82 anos em Nova York, vítima de um câncer. Autor de bestsellers, Sacks usava experiências pessoais e clínicas para escrever de forma humorada sobre a mente humana.
 
Se neurologista escritor ou escritor pesquisador, Oliver Sacks não permite uma definição precisa de si mesmo: nos dois campos ele brilhou.
 
Sacks escrevia sobre os caminhos tortuosos do cérebro humano e explorava em estudos de caso histórias engraçadas da natureza humana. O cientista britânico morreu neste domingo (30/08), aos 82 anos, em sua casa em Nova York, informou o jornal New York Times. Ele lutava contra um câncer.
 
Como médico e escritor, ele alcançou enorme popularidade, principalmente nos Estados Unidos, onde vendeu mais de um milhão de cópias. Sacks descrevia seu trabalho como "patografia" ou "romance neurológico".
 
Em seus livros científicos, ele escrevia muitas vezes com humor sobre doenças neurológicas. O mais famoso é uma coleção de 24 estudos de caso intitulada O homem que confundiu sua mulher com um chapéu (1985).
 
Sacks contava histórias como a da paciente cega Madleine J., que considerava suas mãos como "inúteis pedaços de massa", ou do telegrafista de submarino Jimmie G., que se imaginava há décadas no ano de 1945, ou ainda a do Dr. P., que achava que sua mulher era um chapéu, já que seu cérebro não conseguia decifrar o que os seus olhos viam.
 
Inspiração
 
Bestsellers garantiram a Sacks uma fama incomum entre a comunidade científica. Seus livros foram adaptados para o cinema e o teatro.
 
A cada ano, ele recebia cerca de 10 mil cartas de fãs de todo o mundo. "Eu respondo sem exceção a cada remetente que tem menos de dez ou mais de 90 anos ou quem está na prisão", disse.
 
A versão para os cinemas do livro Tempo de despertar (1973), com as atuações de Robin Williams e Robert DeNiro, foi indicada ao Oscar em 1991.
 
Após a notícia de sua morte, intelectuais famosos prestaram homenagens ao neurocientista. A escritora britânica J.K. Rowling, autora da série Harry Potter, descreveu Sacks como um "grande inspirador da humanidade."
 
Curiosidade sem limites
 
Em seus estudos de caso, Sacks fazia um retrato de pessoas que saíam da normalidade. "Uma pequena lesão cerebral, e nós chegamos a um outro mundo", disse ele uma vez.
 
O cientista se via como um descobridor e "naturalista". Sua curiosidade sem limites o levou a pesquisar sobre assuntos diversos e escrever sobre a velhice, a percepção das cores, Sigmund Freud, alucinações e fotografia.
 
Sacks publicou a autobiografia – Sempre em Movimento – somente neste ano. Além de detalhes de sua trajetória, o livro traz histórias de vida reais, engraçadas, alegres e tristes.
 
Em fevereiro, Sacks revelou num artigo publicado no New York Times que se encontrava em estado terminal. O melanoma que o deixou cego de um dos olhos nove anos atrás evoluiu para uma metástase no fígado.
 
"A minha sorte acabou", escreveu. A morte, para ele, não era mais um "conceito abstrato", mas "uma presença demasiado próxima que não se pode negar."

Fonte:http://jornalggn.com.br/noticia/a-morte-do-escritor-e-neurocientista-oliver-sacks

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