Adrian Raine (Divulgação/University of Southern California/VEJA)
Por dentro da mente dos criminosos
O psiquiatra britânico Adrian Raine estuda quais os fatores neurológicos, ambientais e genéticos por trás do comportamento violento. Em entrevista à revista VEJA, ele analisa uma série de assuntos delicados, como livre-arbítrio, maioridade penal, sistema prisional e até os protestos no Brasil.
O
psiquiatra britânico Adrian Raine dedicou sua vida a entender como
surge o comportamento violento. Para isso, o britânico já esteve em
cadeias de segurança máxima, onde analisou o cérebro de criminosos
perigosos e psicopatas. Também já esteve em maternidades, para estudar
quais fatores ambientais podem influenciar na formação de adultos
violentos. Hoje, ele é professor de psiquiatria e criminologia na
Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, onde realiza estudos em
áreas tão variadas quanto neurociência, genética e saúde pública para
dar origem a um novo ramo da ciência: a neurocriminologia.
Adrian Raine acaba de lançar o livro The Anatomy of Violence (A
Anatomia da Violência, inédito em português), no qual descreve como
funciona o cérebro de um indivíduo violento e como uma série de
tratamentos pode prevenir esse tipo de comportamento. Em entrevista ao
site de VEJA, Raine analisa uma série de assuntos delicados, como
livre-arbítrio, maioridade penal, sistema prisional e até os protestos
no Brasil. De passagem por Porto Alegre, Raine marchou por três horas ao
lado de manifestantes até o momento em que um grupo de vândalos entrou
em confronto com a polícia. “Vandalismo, quebrar carros, roubar lojas –
isso não é atacar o governo, mas atacar os cidadãos do Brasil. Penso que
essas pessoas têm não só uma razão política para sua violência, mas uma
razão biológica.”
O cientista acredita que um dia será possível prever quem tem maiores chances de cometer um crime apenas
por meio de imagens de seu cérebro. Mas adverte que esse cenário
exigirá cautela: “Até porque minhas imagens cerebrais se parecem com a
de um criminoso que matou 64 pessoas – eu tenho o cérebro de um serial killer”.
Como a neurocriminologia pode ajudar a explicar os casos extremos de violência? A
neurocriminologia é uma nova disciplina que estou começando a
desenvolver nos Estados Unidos, que envolve a aplicação de técnicas da
neurociência para entender as causas do crime. Nós tentamos juntar tudo
que aprendemos nos últimos anos – na genética, técnicas de imagem
cerebral, neuroquímica, psicofisiologia e neurocognição – para explicar
porque algumas pessoas crescem para se tornar criminosos violentos.
Queremos entender o cérebro por trás não só dos criminosos comuns, mas
também o de psicopatas, criminosos de colarinho branco e homens que
batem em suas esposas. Nós estudamos todo o leque de comportamento
antissocial e observamos que, não importa a forma, existe uma base
biológica para todos eles.
Todas essas formas diferentes de violência têm a mesma base cerebral? Há
diferenças. Por exemplo, minha equipe estudou psicopatas – os
criminosos que não têm empatia nem remorso. Já sabíamos que eles têm um
baixo funcionamento da amígdala, o centro emocional do cérebro. Nossa
pesquisa mostrou ainda mais: que nesses indivíduos a estrutura física
dessa área é 18% menor do que no resto da sociedade. Com o centro
emocional reduzido e sem funcionar direito, os psicopatas passam a não
sentir medo. É por isso que eles quebram as regras da sociedade – pois
não têm medo da punição. Quando estudamos homens que batem em suas
esposas, no entanto, descobrimos que suas amígdalas são muito ativas,
mas o córtex pré-frontal não funciona direito. O córtex pré-frontal é a
área que regula as emoções. Nossa conclusão é que a alta atividade da
amígdala resulta em reações exageradas a estímulos leves, como receber
críticas da esposa – o que os deixa mais agressivos. Esses homens que
respondem exageradamente aos estímulos não possuem os recursos
cognitivos para controlar essa emoção. São formas diferentes de
comportamentos antissociais, com tipos diferentes de predisposições
biológicas.
Como se explica que problemas em áreas cerebrais específicas possam levar a comportamentos violentos? Quando
temos de tomar uma decisão moral e pensamos em quebrar a lei (e todos
nós já pensamos em fazer algo errado), ficamos ansiosos, com um pouco de
medo. Esse é o freio de emergência que nos impede de quebrar as regras
da sociedade. Mas esse freio não funciona direito nos psicopatas. Eles
sabem o que é certo e errado, mas não têm o sentimento correspondente. E
é esse sentimento, e não o conhecimento, que nos faz frear nosso
impulso. Isso traz uma questão que me fascina. Como os psicopatas têm o
motor emocional quebrado – e eles não têm culpa de possuírem essa
disfunção -, será correto culpá-los e castigá-los por seu comportamento?
Essa é uma questão que teremos que discutir no futuro.
Todo o comportamento violento pode ser explicado por disfunções no cérebro?Na
verdade, encontrar as causas da violência é muito mais complexo do que
isso. Só agora estamos começando a identificar com segurança quais as
áreas cerebrais que, se prejudicadas, aumentam as taxas de violência.
Mas esse é um quebra-cabeça com muitas peças. A amígdala é uma peça, o
córtex pré-frontal é outra peça, e certamente há outras áreas cerebrais
envolvidas. Mas também há outros tipos de peças. Não é só a biologia. Os
fatores sociais também são importantes. Desemprego, pobreza,
preconceito racial, maus tratos paternos e más condições de habitação e
educação têm seu papel nisso – e inclusive podem afetar o
desenvolvimento cerebral. Acontece que por décadas os pesquisadores têm
estudado só essas peças sociais. Agora estamos descobrindo as peças
biológicas do quebra-cabeça. O próximo desafio é colocar essas peças
juntas.
Como essa técnica pode explicar a violência que irrompe em protestos, por exemplo? Pense nos manifestantes que vão às ruas no Brasil. Muitos deles são pacíficos. Eu fui a uma manifestação em Porto Alegre (o pesquisador esteve no Brasil no final de junho)
e marchei com a população por três horas. Todos estavam tranquilos,
muito organizados, não vi nenhum tipo de comportamento antissocial. Mas
por volta das 21 horas, gás lacrimogênio foi disparado pela polícia e eu
decidi que era hora de ir embora. Depois, fiquei sabendo que uma
pequena minoria ficou por ali e praticou atos obviamente antissociais.
Vandalismo, quebrar carros, roubar lojas – isso não é atacar o governo,
mas atacar os cidadãos do Brasil. Se eu pudesse analisar o cérebro
dessas pessoas, provavelmente veria que eles tinham uma baixa função da
amígdala, a parte responsável pela consciência, remorso, culpa e medo.
Penso que essas pessoas têm não só uma razão política para sua
violência, mas uma razão biológica.
Mas nesse caso, as pessoas não podem estar agindo por pressão do grupo? Seguindo um comportamento de manada? Sim,
a situação social é importante nesse tipo de comportamento. Mas repare
que, mesmo com esse estímulo do grupo, só algumas pessoas quebram a lei.
A maioria decide fugir.
Adrian
Raine esteve no Brasil para participar do Congresso Mundial de Cérebro,
Comportamento e Emoções, realizado em São Paulo, onde conversou com o
site de VEJA
Em seus estudos, o senhor descobriu outros fatores que podem influenciar o comportamento violento? Minha
equipe fez diversas pesquisas. Algumas se focam em fatores no começo da
vida que afetam o desenvolvimento da criança. Por exemplo, mães que
fumam ou bebem durante a gravidez – suas crianças têm de duas a três
vezes mais chances de se tornarem adultos violentos. Estudamos crianças
que tiveram problemas de parto ou pouca nutrição durante a gravidez, o
que pode danificar sua estrutura cerebral. Também pesquisei outra área
interessantíssima. Pessoas que possuem uma baixa frequência cardíaca
quando estão em repouso têm uma probabilidade maior de agir
agressivamente. Essa pesquisa foi replicada com êxito em muitos países.
Isso acontece porque, quando alguém vai a um laboratório, para medir sua
pulsação, isso causa um pouco de stress. Sua pulsação, normalmente
acelera. Pessoas cuja pulsação não responde minimamente a stress não têm
medo e, por isso, podem cometem mais crimes ou se envolver em brigas
nas ruas.
Existe uma predisposição genética para a violência? O
que nós já sabemos é que cerca de 50% da variação nas taxas de
violência pode ser atribuída a fatores genéticos. Toda uma geração de
pesquisas, realizada com irmãos gêmeos e filhos adotivos, mostrou que os
fatores hereditários são, sim, importantes. A próxima geração de
pesquisas é a molecular, que já começa a identificar quais os genes
envolvidos. Até agora o mais estudado é o gene da monoamina oxidase A
(MAOA), que, quando produz uma baixa quantidade de sua enzima, atrapalha
o funcionamento de neurotransmissores. Indivíduos com essa mutação são
particularmente suscetíveis ao comportamento antissocial, principalmente
quando sofrem abusos na infância. Mas é muito importante destacar que
nunca vamos descobrir um gene que seja, sozinho, responsável pela
violência. Descobriremos vários, que serão associados a muitos outros
fatores sociais. O ambiente também é importante por alterar o modo como
os genes funcionam. O DNA é fixo, mas o modo como ele se expressa – e
como afeta o cérebro – pode ser alterado pelo ambiente.
O ambiente pode explicar, por exemplo, a diferença entre a taxa de violência no Brasil e no Japão? Sim.
Além de todos os fatores ambientais já citados, há muitos outros que
podem fazer um país ser mais violento que outro. Os Estados Unidos, por
exemplo, tem um alto índice de índice de assassinatos também por causa
da grande disponibilidade de armas. Existe outro fator bem interessante
do qual falo em meu livro. Nele, eu estudo 26 países e analiso como o
consumo de peixes em cada local se relaciona com o índice de homicídios.
No Japão, onde as pessoas consomem uma imensa quantidade, os índices
são muito baixos. Em países do leste europeu, com baixo consumo de
peixe, as taxas de homicídio são altas. Isso acontece porque o peixe
possui ômega 3 – um ácido graxo de cadeia longa, que é vital para a
estrutura cerebral e seu bom funcionamento. Ele também regula a
expressão dos genes e o funcionamento dos neurotransmissores. Nossas
pesquisas mostram que um cérebro disfuncional pode levar a um
comportamento disfuncional. E um modo de melhorar o funcionamento
cerebral pode ser simplesmente a alimentação com peixe.
O senhor está dizendo que aumentar o consumo de peixe pode diminuir as taxa de homicídio em um país? Em
parte, sim. O caso do ômega 3 é interessante para pensarmos no
desenvolvimento de novos tratamentos. Duas pesquisas já mostraram que
dar óleo de peixe para prisioneiros pode reduzir o número de crimes
cometidos na cadeia em até 35%. O primeiro desses estudos foi feito na
Inglaterra e replicado na Holanda. Minha equipe realiza estudos com
crianças, que também mostram que fornecer ômega 3 para pessoas de 8 a 16
anos ajuda a reduzir a agressão e o comportamento antissocial nessa
fase da vida. Há uma mensagem por trás disso: biologia não é destino.
Nós podemos mudar os fatores de risco que dão origem ao comportamento
agressivo.
Então o comportamento violento pode ser prevenido? Nós
sabemos que, se pudermos melhorar o funcionamento do cérebro, podemos
melhorar o comportamento. E existem estudos que colocaram isso em
prática. Em um deles, enfermeiras visitaram mães durante sua gravidez e
nos dois primeiros anos de vida da criança. Elas aconselhavam as
mulheres a parar de beber e fumar, ensinavam qual a nutrição adequada,
mostravam as necessidades psicológicas dos bebês. Ao comparar o
resultado dessas crianças com o de um grupo de controle, que não recebeu
as visitas, os pesquisadores descobriram que a delinquência juvenil
caiu pela metade. Nós fizemos um estudo com crianças de três anos, no
qual fornecemos uma melhor nutrição, mais exercícios físicos – que
resultam no desenvolvimento de novas células nervosas – e exercícios
cognitivos durante dois anos. Oito anos depois, essas crianças tinham
melhores funções cerebrais, elas estavam mais alerta e atentas e seus
cérebros pareciam ser pelo menos um ano mais maduros do que o grupo de
controle. Não é só isso: seguimos essas crianças até os 23 anos e vimos
uma redução de 34% no número de infrações penais. Há uma última técnica
que pode ser útil, que é a meditação. Estudos mostram que ela melhora o
funcionamento do lóbulo pré-frontal – uma área cerebral que sabemos
estar disfuncional em indivíduos violentos. Essa técnica ainda não foi
testada em prisioneiros. Isso porque os cientistas relutam em reconhecer
que existem bases cerebrais para o comportamento violento. Espero que
meu livro abra as portas para esse novo campo de pesquisas.
Então é possível tratar até o cérebro de adultos? Nós
sabemos que nunca é cedo demais para intervir no caso de crianças e
nunca é tarde demais para tratar os adultos. Os estudos com ômega 3
mostram isso. O cérebro é um órgão muito plástico.
Do ponto de vista da neurociência, quando o cérebro está maduro e a pessoa pode ser julgada como um adulto? Essa
questão é bastante debatida em todo o mundo. O que sabemos é que o
cérebro humano não está completamente maduro até os 20 anos. Os
adolescentes de 15 e 16 anos são impulsivos, não controlam suas emoções,
porque seu córtex pré-frontal não está completamente desenvolvido. Em
alguns casos, ele demora até os 30 anos para se desenvolver, e sabemos
que disfunções nessa região são encontradas em criminosos. Acho que faz
sentido levar em conta o desenvolvimento cerebral para analisar
conceitos como a responsabilidade penal, mas não existe uma linha
mágica. Há pessoas de 19 anos com cérebros funcionando como o de
indivíduos de 16 anos, mas também existem pessoas de 15 com cérebro de
20. No futuro, poderemos usar outras medidas de maioridade neural, que
usem imagens cerebrais para analisar se uma pessoa é responsável por seu
comportamento. Mas é claro que hoje temos de ser práticos e decidir uma
idade de corte. Nesse caso, fixá-la em 18 anos não me parece ruim.
Videoteca básica
Minority Report
Uma força policial capaz de prever quem vai cometer crimes e agir antes que eles aconteçam é o tema do filme Minority Report,
de 2002 (baseado num conto homônimo do autor de ficção científica
Philip K. Dick, escrito em 1956). A história se passa nos Estados
Unidos, em 2045. O sistema parece funcionar perfeitamente – a cidade
passa anos sem registrar nenhum homicídio – até que um dos policiais
responsáveis por prevenir os crimes (interpretado por Tom Cruise) é
apontado o próximo assassino.
Diretor: STEVEN SPIELBERG
O sistema judiciário pode usar imagens cerebrais para julgar alguém ou prever suas chances de cometer crimes? É
possível, mas nós ainda não podemos colocar isso em prática. Pesquisas
iniciais, feitas neste ano, mostraram que imagens cerebrais ajudam a
prever melhor quais criminosos podem voltar a cometer atos violentos nos
próximos três ou quatro anos. Atualmente, a justiça usa fatores
demográficos como idade, gênero, emprego e histórico para prever quais
indivíduos são mais perigosos. Os juízes têm de fazer isso o tempo todo,
quando decidem se condenarão alguém a trabalhos comunitários ou à
cadeia. As técnicas de imagem cerebrais estão começando a nos dar mais
informações que podem ajudar a saber se determinado indivíduo é um
perigo para a sociedade.
O senhor não tem medo que isso leve a algum tipo de abuso, com indivíduos sendo presos por causa de seu perfil cerebral? Na verdade, sim – como no caso do filme Minority Report.
Nele, a polícia impede os crimes antes que aconteçam. Um grande medo
que tenho é que no futuro usemos a genética, as imagens cerebrais e
outros fatores neurobiológicos para prever a violência e aprisionar as
pessoas antes mesmo de elas cometerem qualquer crime. Isso me preocupa.
Até porque minhas imagens cerebrais se parecem com a de um criminoso que
matou 64 pessoas – eu tenho o cérebro de um serial killer.
Além disso, tenho outros fatores biológicos para o crime, como baixa
pressão sanguínea, e tive problemas de nutrição e no parto. Se esse
cenário acontecer o futuro, eu seria um dos primeiros a ser preso. Acho
que devemos tomar muito cuidado nessa área. Existe uma tensão entre
proteger as liberdades civis – e não prender ninguém por probabilidade –
e a necessidade de proteger a sociedade. Essa é a tensão que teremos de
enfrentar no futuro.
O senhor falou sobre a influência do cérebro, da genética e do ambiente no comportamento. Onde fica o livre-arbítrio? Esse
é outro desafio da minha área de pesquisas que costuma deixar muitas
pessoas desconfortáveis. Pense em um bebê inocente, cuja mãe fumou e
bebeu na gravidez, que teve uma nutrição ruim e problemas no parto, com
genes que podem resultar em mau comportamento, com problemas de
habitação e de educação durante seu desenvolvimento. Nós sabemos que
essa criança tem muito mais chances de se tornar um adulto violento. Uma
pergunta que surge a partir disso: será que essa pessoa tem
livre-arbítrio? Ela é responsável por seus atos? Em meu livro, eu digo
que o livre-arbítrio é reduzido em algumas pessoas, logo no começo de
suas vidas, por influências que estão além de seu controle. O
livre-arbítrio tem vários tons: a pessoa pode ter total livre-arbítrio,
pouco, ou quase nenhum. Acho que devemos levar isso em conta no sistema
judicial, na hora de punir as pessoas. Existe um caso real de um
indivíduo que teve um tumor em seu córtex pré-frontal que o transformou
num pedófilo. Os médicos retiraram o tumor, e seu comportamento voltou
ao normal. Será que ele era tão responsável por seus atos quanto alguém
que fez a mesma coisa e não tinha o tumor? Essa é a dificuldade e a
tensão desse campo de estudos, e elas não serão superadas de modo fácil.
Em um nível, é importante reconhecer os fatores de risco que conspiram
para diminuir o livre-arbítrio. Mas também temos de levar em conta a
igualdade e a justiça, buscando uma lei igual para todos. Não tenho
respostas no momento. Esse é um debate aberto.
Fonte: https://veja.abril.com.br/ciencia/por-dentro-da-mente-dos-criminosos/
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