Máquina se desenvolve - mas não em nossa direção. A Máquina avança - mas não rumo ao nosso objetivo (Foto: Getty images)
Estamos viciados em tecnologia ou apenas em transição para o futuro?
Criamos a Máquina para realizar nossas vontades, mas agora já não podemos fazer com que nos atenda
Em 1909, o escritor britânico Edward Morgan Forster publicou a novela The Machine Stops, retratando um cenário futurista distópico, no qual somos, simultaneamente, servidos e controlados por uma máquina. Numa surpreendente antecipação tecnológica, os habitantes do planeta Terra (ano indefinido) comunicam-se por meio de uma placa redonda, segura pelas mãos, de onde emerge uma luz azulada projetando à distância imagem e som.
Construída pelo homem, a Máquina gradativamente torna-se onipresente, nada acontece fora de seu domínio, toda ação humana, da mais simples como levantar um objeto do chão até os relacionamentos interpessoais, é mediada pela Máquina. Vashti, palestrante plenamente integrada ao sistema, tem cinco filhos, um dos quais, Kuno, é um rebelde que percebe a eminente falência do sistema com a “parada” da Máquina.
Aflito, Kuno alerta sua mãe "Você não percebe, não percebem todos vocês palestrantes, que somos nós que estamos morrendo e que aqui a única coisa que realmente vive é a Máquina? Criamos a Máquina para realizar nossas vontades, mas agora já não podemos fazer com que nos atenda. Ela nos roubou a sensação de espaço e a sensação de toque, confundiu todas as relações humanas e reduziu o amor a um ato carnal, paralisou nossos corpos e nossas vontades e agora nos obriga a adorá-la. A Máquina se desenvolve - mas não em nossa direção. A Máquina avança - mas não rumo ao nosso objetivo. Existimos apenas como os corpúsculos sanguíneos que correm por suas artérias, e se ela pudesse funcionar sem nós, nos deixaria morrer”.
Numa visão para alguns utópica, em 2018, Brand Smith e Harry Shum, presidente e vice-presidente da Microsoft (The Future Computed: artificial intelligence and its role in society, disponível em PDF) projetam um cenário factível para 2038: enquanto você dorme, seu assistente virtual - Cortana, Siri, Alexa - estará conectado com os demais dispositivos virtuais da sua "casa inteligente” garantindo um despertar sincronizado com os demais dispositivos, oferecendo um café da manhã ao seu gosto.
Enquanto você se prepara, o assistente virtual lê as notícias, relatórios de pesquisa, as mídias sociais, destacando os temas e eventos relacionados aos seus interesses; além disso, organizará seu calendário profissional e pessoal do dia. Não haverá risco de escolher uma roupa inadequada, a previsão do tempo será certeira bem como as condições do trânsito. O seu assistente virtual igualmente lembrará dos aniversários, compromissos sociais reservando, quando for o caso, o restaurante de sua preferência.
Avançando mais ainda, nem será necessário sair para o trabalho, você poderá realizar as reuniões em casa alocando todos os participantes numa sala virtual movida por realidade mista (com tradução automática e simultânea para o idioma nativo de cada participante). Caso seja necessário se deslocar, um carro autônomo (sem motorista) te pegará possibilitando que você trabalhe ou faça qualquer outra atividade no percurso. Os assistentes virtuais controlarão nossa alimentação, consulta e exames médicos, aprendizado, e muito mais.
A ação da sociedade - instituições, governos, empresas, indivíduos - irá definir se chegaremos lá mais próximos da previsão de Foster ou de Smith e Shum. Por enquanto, convém ponderar sobre nossa relação atual com a tecnologia.
A Intelligent Systems Conference, realizada em Londres no início de setembro, teve como palestrante inaugural Elizabeth Churchill, diretora de experiência do usuário no Google e presidente ACM (Association for Computing Machinery). Tendo como campo de estudo a interação humano - computador, a ciência cognitiva e a psicologia experimental, nos últimos 20 anos Churchill dedica-se a criar aplicativos e serviços inovadores para o usuário final, particularmente nas áreas de computação ubíqua e móvel, mídia social, comunicação mediada por computador, mídia local e ciências da internet / web, no Reino Unido, nos EUA e na Ásia.
Sua motivação é identificar como os fatores técnicos, culturais e sociais afetam a maneira pela qual as pessoas se comunicam (ou não) e colaboram (ou não). Churchill reconhece que o design das plataformas digitais, particularmente das gigantes de tecnologia, é concebido para “fazer a gente voltar sempre; as empresas de internet são organizadas em torno de ferramentas de dosagem de dopamina projetadas para atrair o público”. Para ela, nossa crescente dependência das tecnologias está comprometendo a ideia de bem estar, questão sensível à um terço dos usuários americanos, preocupados com os efeitos negativos à saúde, aptidão mental e felicidade.
A ação da sociedade - instituições, governos, empresas, indivíduos - irá definir se chegaremos lá mais próximos da previsão de Foster ou de Smith e Shum. Por enquanto, convém ponderar sobre nossa relação atual com a tecnologia.
A Intelligent Systems Conference, realizada em Londres no início de setembro, teve como palestrante inaugural Elizabeth Churchill, diretora de experiência do usuário no Google e presidente ACM (Association for Computing Machinery). Tendo como campo de estudo a interação humano - computador, a ciência cognitiva e a psicologia experimental, nos últimos 20 anos Churchill dedica-se a criar aplicativos e serviços inovadores para o usuário final, particularmente nas áreas de computação ubíqua e móvel, mídia social, comunicação mediada por computador, mídia local e ciências da internet / web, no Reino Unido, nos EUA e na Ásia.
Sua motivação é identificar como os fatores técnicos, culturais e sociais afetam a maneira pela qual as pessoas se comunicam (ou não) e colaboram (ou não). Churchill reconhece que o design das plataformas digitais, particularmente das gigantes de tecnologia, é concebido para “fazer a gente voltar sempre; as empresas de internet são organizadas em torno de ferramentas de dosagem de dopamina projetadas para atrair o público”. Para ela, nossa crescente dependência das tecnologias está comprometendo a ideia de bem estar, questão sensível à um terço dos usuários americanos, preocupados com os efeitos negativos à saúde, aptidão mental e felicidade.
Suas pesquisas indicam que o “vício tecnológico” afeta as capacidades cognitivas dos usuários: pensamento analítico, memória, foco, reflexão sobre criatividade e resiliência mental. Enfática, a diretora do Google alertou igualmente que a estrutura da internet e o ritmo das mudanças digitais ameaçam as interações humanas, a segurança, a democracia, os empregos e a privacidade. Churchill admite, contudo, que uma pluralidade de especialistas está convencida de que a vida digital continuará a expandir os limites e as oportunidades na próxima década, e que os benefícios serão maiores do que os malefícios.
*Dora Kaufman é pós-Doutora COPPE-UFRJ (2017) e TIDD PUC-SP (2019), Doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais” (2017), e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?” (2019). Professora convidada da FDC e professora PUC-SP.
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