COMO O AYAHUASCA E OUTROS PSICODÉLICOS ESTÃO REVOLUCIONANDO A MEDICINA

 

Brasil é um dos países com maior número de estudos sobre substâncias psicodélicas (Foto: Ilustração: Rodrigo Damati)

Brasil é um dos países com maior número de estudos sobre substâncias psicodélicas (Ilustração: Rodrigo Damati)


Como o Brasil se tornou uma potência de estudos sobre psicodélicos

Quando o assunto são pesquisas sobre substâncias psicoativas, o país está ao lado de gigantes como Estados Unidos e Inglaterra. Mas a posição de vantagem pode não durar muito

No mesmo dia em que se confirmou a arrastada vitória do candidato do Partido Democrata, Joseph Biden, à presidência dos Estados Unidos, o estado norte-americano do Oregon aprovou duas legislações históricas no país: as Medidas 109 e 110, que descriminalizam o uso de certas drogas, entre elas a psilocibina. O psicodélico extraído do cogumelo Psilocybe cubensis está agora permitido como apoio para psicoterapia em ambientes controlados no estado da costa oeste.

A aprovação do uso da psilocibina em psicoterapia evidencia o que já vem sendo chamado por especialistas de uma “Renascença psicodélica”. Dos anos 2000 para cá, aumentaram as pesquisas sobre os potenciais do uso dessas substâncias para o tratamento de distúrbios mentais, como depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático.

No PubMed, uma das maiores bases da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos com artigos de investigação em biomedicina, o número de publicações sobre “depressão” e “psilocibina” saltou de 0, em 2000, para 21, em 2016, e 53, em 2020. Algo parecido é observado com outros psicodélicos. As pesquisas com ayahuasca — chá feito a partir da infusão das plantas amazônicas cipó-jagube e arbusto-chacrona — foram de 0 para 25 e 62 nesses anos, respectivamente.

Mais do que um mero espectador do que vem acontecendo nos Estados Unidos, o Brasil é um protagonista importante desta “Renascença”. “Nós não estamos à frente de países como Estados Unidos e Inglaterra, mas estamos ao lado, o que já chama a atenção”, ressalta o neurocientista Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e um dos maiores nomes da pesquisa com psicodélicos no Brasil.

Outro pesquisador de destaque no tema, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e cofundador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Leipsi), no interior paulista, concorda. “Há alguns anos, começaram a sair artigos questionando se o Brasil seria o novo epicentro do mundo psicodélico”, conta. “A palavra epicentro talvez seja um pouco exagero, mas muito provavelmente somos um dos cinco principais centros pesquisadores do mundo.”

Made in Brazil
Há alguns motivos para o nosso posicionamento nessa área de estudos. O primeiro — e talvez o principal, especialmente no caso da ayahuasca e da psilocibina — é uma questão legal. Existe hoje uma “zona cinzenta” na legislação brasileira, que não proíbe o uso da ayahuasca em rituais e situações religiosas, tampouco em pesquisas. A psilocibina, por sua vez, é proibida enquanto substância pura, mas o cogumelo do qual é extraída não é ilegal. “Nos Estados Unidos, fazer pesquisa com ayahuasca é tão difícil quanto com a psilocibina”, explica Tófoli. No caso da psilocibina, mesmo no Brasil a situação dos estudos é um pouco mais complicada, pela necessidade de obtenção de autorização para padronizar as doses das substâncias. O jeito, então, é estudá-la com base em relatos de pacientes.

O outro motivo é bem particular: os cientistas brasileiros, opinam Tófoli e Ribeiro, têm um quê de ousadia que teria sido fundamental para colocar o país nessa vanguarda. “Existe um conjunto de pesquisadores no Brasil que têm coragem de enfrentar o paradigma e o entendimento de buscar a inovação”, diz Tófoli. “Muitos se posicionam contra a política de drogas e defendem que é preciso empurrar essa fronteira.”

A ayahuasca, chá feito a partir da infusão das plantas amazônicas cipó-jagube e arbusto-chacrona, cresceram a partir do ano 2000 (Foto: Ilustração: Rodrigo Damati)

A ayahuasca, chá feito a partir da infusão das plantas amazônicas cipó-jagube e arbusto-chacrona, cresceram a partir do ano 2000 (Ilustração: Rodrigo Damati)

Ribeiro coloca essa ousadia no contexto histórico: entre os anos 1950 e 1960, diversas pesquisas sobre psicodélicos para o tratamento de distúrbios mentais começaram a ser feitas em países da Europa e nos Estados Unidos. Mas a campanha de guerra contra as drogas instaurada nos anos 1970 pelo então presidente dos EUA, Richard Nixon, colocou um freio nos estudos.

No Brasil, porém, por não serem ilegais, as pesquisas com ayahuasca foram retomadas principalmente a partir a partir do início do novo milênio, colocando o país em uma posição de vantagem em relação aos outros. “Nós largamos na frente, mas começamos esse movimento de pesquisa quando nos outros países ainda era ‘queimação’, era ruim para a carreira”, analisa Sidarta. “Hoje não, virou uma coisa meio sexy fazer pesquisas com psicodélicos. Eles estão voltando pela porta da frente”

O resultado disso é que, em 2011, cientistas brasileiros já tinham o primeiro artigo publicado em que observaram, com ressonância magnética, os efeitos da ayahuasca no cérebro — estudo semelhante só foi feito na Inglaterra seis anos depois. “Mas isso é uma anomalia, vai passar, daqui a 10 anos não estaremos mais nessa posição por falta de investimentos”, lamenta o pesquisador da UFRN.

Um problema real
O interesse no uso de psicodélicos para o tratamento de transtornos psiquiátricos não é à toa: a saúde mental no mundo vem piorando ao longo das últimas décadas. O mais recente relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o tema, de 2017, revela que só a depressão afeta 300 milhões de pessoas no mundo, o equivalente a 4,4% da população global. O problema é a principal causa de anos vividos com incapacidade no planeta. Os transtornos de ansiedade não ficam muito atrás e aparecem em sexto lugar no ranking. Ao mesmo tempo, o mundo passa pelo que já vem sendo considerado uma epidemia de suicídio, com cerca de 800 mil mortes por ano — a cada 40 segundos, uma pessoa tira a própria vida.

A psilocibina é um psicodélico extraído do cogumelo Psilocybe cubensis  (Foto: Ilustração: Rodrigo Damati)

A psilocibina é um psicodélico extraído do cogumelo Psilocybe cubensis (Ilustração: Rodrigo Damati)

No Brasil, o mesmo relatório da OMS aponta que 11,5 milhões de pessoas sofrem com a depressão e 18,6 milhões com ansiedade. Diante da pandemia de Covid-19, as perspectivas se agravaram ainda mais. “A saúde mental do brasileiro tende a seguir as médias mundiais, e há razões para crer que isso piorou por causa da pandemia”, adverte a psiquiatra Débora Tavares, membro da Associação Psicodélica do Brasil (APB), criada em 2015 por usuários, profissionais, ativistas e pesquisadores que têm interesse em estudar mais a fundo práticas e políticas que influenciam a experiência de usuários e não usuários das substâncias.

A piora na saúde mental das populações se reflete no consumo de antidepressivos, que vem aumentando. Uma pesquisa da Funcional Health Tech, empresa de inteligência de dados e gestão de serviços de saúde, divulgada no início de 2020, aponta que o consumo de antidepressivos no Brasil cresceu 23% entre 2014 e 2018. Nos Estados Unidos, 13,2% dos adultos tomaram algum tipo de antidepressivo entre 2015 e 2018, de acordo com o Centro Nacional de Estatística em Saúde (NCHS, na sigla em inglês). Em uma estimativa da Associação Americana de Psicologia, de 1999 a 2014 houve um crescimento de 64% no uso de tais medicamentos. 

Tratamento que não é viagem
Mas nem sempre as drogas antidepressão funcionam como o esperado. Uma análise da eficácia de 21 antidepressivos, publicada no periódico The Lancet em 2018, mostrou que a taxa média de resposta a esses medicamentos foi de 17,7%. Um deles, inclusive, indicou uma resposta pior do que se o paciente não tivesse usado nada. Se levada em consideração a taxa de pacientes que abandaram o tratamento devido a efeitos colaterais, o uso de apenas dois remédios seria recomendado.

“A psiquiatria tradicional vendeu para as pessoas a ideia de que se usarem tarja preta todos os dias serão felizes, e isso não é verdade”, disse Ribeiro em uma oficina sobre cannabis e psicodélicos promovida pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que ocorreu virutalmente no último dia 13 de outubro. “As pessoas tomam remédios com muitos efeitos colaterais e poucos benéficos, vivemos uma epidemia de sofrimento.”

É neste cenário que os psicodélicos se mostram promissores. “Realmente tem aumentado o interesse no tema, tanto psiquiatras quanto a população estão se atentando para o assunto”, avalia Tavares. E cada vez mais estudos vêm demonstrando que existem benefícios reais no uso dessas substâncias para uma variedade de problemas. É como se elas dessem um “reset” no cérebro, segundo descrevem pacientes que participaram de experimentos, tornando-o maleável.

A metilenodioximetanfetamina (MDMA, também conhecido como ecstasy) tem sido estudada pelo seu potencial de induzir o próprio corpo a produzir e liberar serotonina e outros neurotransmissores.  (Foto: Ilustração: Rodrigo Damati)

A metilenodioximetanfetamina (MDMA, também conhecido como ecstasy) tem sido estudada pelo seu potencial de induzir o próprio corpo a produzir e liberar serotonina e outros neurotransmissores. (Ilustração: Rodrigo Damati)

Isso porque elas têm moléculas e estruturas que se assemelham à serotonina, neurotransmissor cujo desequilíbrio está associado à presença de sintomas de depressão e ansiedade. É o caso da dimetiltriptamina (DMT), molécula presente na ayahuasca; da psilocibina, que tem DMT em parte de sua estrutura molecular; e de tantos outros psicodélicos naturais ou sintetizados em laboratórios, como a ibogaína (princípio ativo encontrado na raiz de uma planta de origem africana), a mescalina (extraída do cacto peiote) e a dietilamida do ácido lisérgico (LSD).

Há também um outro rol da terapia psicodélica que vem testando a metilenodioximetanfetamina (MDMA, também conhecido como ecstasy) em terapias pelo potencial da substância de induzir o próprio corpo a produzir e liberar serotonina e outros neurotransmissores. Atualmente, um grande estudo que usa a droga no tratamento de transtorno de estresse pós-traumático está na fase 3 de teses clínicos nos Estados Unidos — se comprovada a eficácia, a Food and Drug Administration (FDA), que regula medicamentos no país, pode aprovar a venda em farmácias para pacientes

Em ambos os casos, as substâncias se mostram relativamente seguras em comparação com outras drogas. Em um ranking feito por pesquisadores do Imperial College de Londres em 2010, ecstasy, LSD e psilocibina aparecem entre os últimos colocados em nível de risco para a saúde tanto de usuários quanto das pessoas em volta — enquanto o álcool e o tabaco pontuam 72 e 26, respectivamente, os psicodélicos citados pontuam, nesta ordem, 9, 7 e 6.

Mantendo os pés no chão
A lista de benefícios encontrados até o momento é longa e inclui também a redução de efeitos adversos e prolongamento dos positivos, com menos tempo de uso. Mas os cientistas brasileiros pedem parcimônia. “Há pessoas que chegam achando que já está regulamentado, mas não está”, alerta Tavares. “O que podemos trabalhar é com a redução de danos, orientando os pacientes que querem usar ou usaram sobre os riscos e contraindicações”, explica.

A dietilamida do ácido lisérgico (LSD) está entre as substâncias psicoativas com menor risco à saúde (Foto: Ilustração: Rodrigo Damati)

A dietilamida do ácido lisérgico (LSD) está entre as substâncias psicoativas com menor risco à saúde (Ilustração: Rodrigo Damati)

O professor da Unicamp reforça: “nada é milagre”. Ele ressalta que sempre haverá pessoas que não vão ter respostas a essa substâncias ou não reagir conforme o esperado. “As evidências mostram que é promissor a gente continuar fazendo pesquisas clínicas com elas". E aí tocamos em um ponto delicado, especialmente para o cenário brasileiro, em que as pesquisas vêm sofrendo com falta de financiamento. “O Brasil está em uma situação dramática para a ciência como um todo, os pesquisadores, para conseguir fazer pesquisa hoje, estão buscando financiamento fora do país", aponta Ribeiro.

As parcerias com o exterior ou com setor privado não são novidade na ciência. Neste caso específico, porém, a psiquiatra Tavares faz questão de chamar a atenção para a necessidade de cautela extra, devido ao interesse da indústria farmacêutica nas substâncias. “O financiamento privado é bem-vindo, mas precisamos defender um modelo que não nos torne reféns de moléculas purificadas”, sugere. 

Tambem seria imprescindível assegurar o acesso a essas terapias por parte das pessoas mais vulneráveis, que são as que mais precisam. “A gente quer não só que depois que tudo isso for comprovado o acesso aconteça sem preconceitos, mas também seja garantido a todos”, observa a médica. A boa posição na largada o Brasil já tem — resta saber se conseguirá mantê-la.

Fonte:https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2020/11/como-o-brasil-se-tornou-uma-potencia-de-estudos-sobre-psicodelicos.html



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