COMO O BRASILSE TORNOU UMA POTÊNCIA DE ESTUDOS SOBRE PSICODÉLICOS


Gráfico do cérebro com psicodélicos (Foto: Gráfico do cérebro com psicodélicos (Fonte: Petri et al. / Proceedings of The Royal Society Interface))

Renascimento psicodélico: gráfico mostra ligações entre as áreas do cérebro em pessoas que usaram psicodélicos (Fonte: Petri et al. / Proceedings of The Royal Society Interface)

Gráfico do cérebro sem psicodélicos / Ayahuasca  (Foto: Gráfico do cérebro sem psicodélicos / Ayahuasca (Fonte: Petri et al. / Proceedings of The Royal Society Interface))

Gráfico mostra ligações entre as áreas do cérebro em pessoas que não usaram psicodélicos. O estudo foi feito com psilocibina (cogumelo mágico) (Fonte: Petri et al. / Proceedings of The Royal Society Interface)


Como a ayahuasca e outros psicodélicos estão revolucionando a psiquiatria

Renascimento psicodélico: substâncias que expandem a consciência trazem respostas promissoras para o tratamento de transtornos como depressão e estresse pós-traumático

Os tecidos que formam o tempo e o espaço se dissolveram ao meu redor. Eu estava em um lugar em que nenhuma dessas duas ideias fazia mais sentido. De repente, me vi de frente para uma amiga. Nós conversávamos, apesar de fisicamente eu estar em um galpão fechado na zona leste de São Paulo e ela, em Ribeirão Preto.

Finalmente, eu estava experimentando as sensações de que ela tanto falava. Pela primeira vez, sentia a força do chá de ayahuasca. E quando percebi que o tempo e o espaço não existiam da forma como eu sempre acreditei, meu estômago deu sinal de vida. No banheiro, vomitei 29 anos do que considerei serem conceitos distorcidos sobre a realidade. Foi fisicamente dolorido porque eles se agarravam à minha garganta como se tivessem unhas.

Em meio ao desconforto, brotou uma reflexão: se eu posso questionar conceitos tão rígidos quanto o tempo, então posso questionar absolutamente tudo. Me veio uma sensação de poder que eu nunca havia imaginado ser possível. Já recomposto, a única coisa que consegui fazer foi me debulhar em lágrimas e agradecer por estar vivendo o começo da minha primeira experiência psicodélica significativa.

Nas cinco horas que se seguiram, de olhos fechados, vi mandalas coloridas, fractais e flores de mil pétalas se abrindo na minha frente. Também refleti profundamente sobre um trecho do livro A Realidade Não É o que Parece (Ed. Objetiva), do físico italiano Carlo Rovelli, sobre o qual eu havia escrito meses antes: “Onde uma onda acaba? Onde ela começa? Pense nas montanhas. Onde começa uma montanha? Onde ela termina? Quanto ela continua sob a terra? São perguntas sem sentido, porque uma onda ou uma montanha não são objetos em si, são maneiras que temos de dividir o mundo para falar dele mais facilmente. Seus limites são arbitrários, convencionais, cômodos. São maneiras de organizar a informação de que dispomos, ou melhor, formas da informação de que dispomos” — exatamente como o tempo do relógio.

Para mim, estava óbvio que sob determinado ponto de vista, todos fazemos parte da mesma unidade. Somos todos um. Então, senti uma profunda compaixão por gente que eu nem conhecia direito. Meu racionalismo não estava pronto para essa constatação, mas, à medida que o chá fazia efeito, ficava cada vez mais claro: eu estava tendo uma experiência mística.

Saí de lá exaurido, mas surpreendentemente leve e estranhamente feliz. Já no táxi, ouvindo Rihanna cantar “We Found Love in a Hopeless Place”, um questionamento muito sofisticado invadiu minha mente: “Que porra foi essa que aconteceu comigo?”.

Nos nove meses seguintes, participei de mais seis experiências como aquela, todas com efeitos muito diferentes entre si. A cada novo contato com o psicodélico eu tinha mais certeza de que deveria escrever uma reportagem sobre o tema. Mas, se eu não conseguia entender a experiência, como poderia explicá-la? As descrições que fiz parecem ser só a parte que a minha consciência limitada conseguiu apreender; a maior parte (e mais interessante) sempre me escapa. É como tentar pegar fumaça com a mão.

Selo #lutepelaciencia (Foto: Selo #lutepelaciencia)

“Eu gosto de comparar a experiência psicodélica com a de um sonho”, me explicou Draulio Araújo, físico e professor de neurociência do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. “É diferente de alucinação, que é um termo terrível para esse tipo de fenômeno.” Ao contrário das alucinações, as visões sob o efeito da ayahuasca acontecem, geralmente, de olhos fechados e não são corporificadas. É por isso que o termo mais preciso para se referir às substâncias que têm esse poder de expandir a mente é “psicodélico”, ou ainda “enteógeno” (do grego “que contém Deus”), e não “alucinógeno”.

“Mas tem uma diferença crucial entre essas visões e os sonhos: quando eu acordo, por exemplo, percebo que aquilo não foi real. Já com a ayahuasca, quando retomo o estado de consciência, o que percebo é que o que eu vivi lá foi tão real quanto o que eu estou vivendo agora conversando com você, não é só criação da minha cabeça.” É claro que meu racionalismo vibrou com a resposta.

Árvore psicodélica / Ayahuasca (Foto: Árvore psicodélica / Ayahuasca (Ilustração: Zansky))


Araújo é coordenador de um dos estudos nacionais feitos com psicodélicos que mais ganharam destaque neste ano. Publicada em junho, no periódico Psychological Medicine, a pesquisa mostra que o chá de ayahuasca — feito há milênios por culturas indígenas da Amazônia com a mistura do cipó jagube e das folhas da chacrona — tem um efeito antidepressivo rápido em pacientes com depressão que não respondem a tratamentos convencionais. “Esses efeitos foram observados um dia depois do uso do chá e se mantiveram de dois a sete dias depois”, explica Araújo. 

Vinte e nove pessoas fizeram parte do estudo, das quais 14 tomaram o chá e 15 receberam placebo. Uma semana depois, dos 14 participantes, 9 apresentaram melhora. No outro grupo, só 4. “No geral, nosso estudo traz novas evidências que apoiam a segurança e o valor terapêutico dos psicodélicos quando usados em ambiente adequado e com a intenção adequada”, afirma a pesquisadora da UFRN Fernanda Palhano, principal autora da pesquisa.

Índios psicodélicos / Ayahuasca (Foto: Índios psicodélicos / Ayahuasca (Ilustração: Zansky))

Apesar do sucesso, Araújo prevê mais trabalho. “A ayahuasca não é uma bala de prata, alguns dos pacientes não responderam a ela. É um problema de pesquisa importante que a gente tem que tentar compreender.”

A constatação me lembrou do que disseram na casa onde tive minha experiência: a ayahuasca é para todo mundo, mas nem todo mundo é para a ayahuasca. Pessoas com histórico ou pré-disposição genética para bipolaridade e esquizofrenia ou que usam antidepressivos inibidores da monoamina oxidase (IMAO), por exemplo, não devem tomar o chá — como mostrou o caso de Cadu, o jovem diagnosticado com esquizofrenia que matou o cartunista Glauco e seu filho Raoni, em 2010.

O estudo brasileiro não está sozinho. Ele vem na onda do renascimento das pesquisas com psicodélicos que já inundou algumas áreas da ciência no mundo todo e promete revigorar campos como a psiquiatria — em que uma das últimas grandes novidades foi a fluoxetina (Prozac), de 1986, usada como base para os antidepressivos mais modernos. “O panorama da psiquiatria nas últimas décadas é muito triste”, explica o médico residente em psiquiatria da Unicamp Marcelo Falchi.

Fonte:https://revistagalileu.globo.com/noticia/2018/07/como-ayahuasca-e-outros-psicodelicos-estao-revolucionando-psiquiatria.html

Renascimento psicodélico (Foto: Ilustração: Zansky/ Design: Feu)

Renascimento psicodélico (Foto: Ilustração: Zansky/ Design: Feu)

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