Por que alguns cheiros nos remetem a emoções e memórias? Cientista explica
A partir de um relato pessoal, entenda como o sentido do olfato está ligado a áreas do cérebro e de que forma sua perda se relaciona com doenças neurológicas
Por José A. Morales García* | The Conversation
14/10/2023 08h07 Atualizado há 6 dias
Anos após meu pai se aposentar, eu estava caminhando pelos subterrâneos de um hospital quando, por acaso, me deparei com a sala de manutenção. O cheiro daquele lugar me envolveu, passando instantaneamente pela minha mucosa olfativa, pelo nervo olfativo e, depois, pelo bulbo olfativo – que, após uma rápida análise, direcionou esse odor para o meu sistema límbico.
De repente e inesperadamente, fui transportado de volta à minha cidade natal, Toledo (na Espanha), para a oficina de carpintaria do meu pai. Ela estava fechada há anos e eu nunca havia pensado muito nisso; mas, por um segundo, senti que podia ver meu pai na minha frente, com o bloco de lixamento na mão, chamando-me para ajudar. E, como num passe de mágica, todo o estresse do meu dia começou a evaporar, dando lugar a uma sensação serena de calma e felicidade.
O barulho de um elevador próximo me trouxe de volta à realidade.
Cheiros que revivem emoções passadas
É possível que o mero cheiro de madeira recém-cortada tenha me transportado 20 anos para trás e que meu hipocampo estivesse resgatando memórias que eu nem sabia que existiam?
Esses tipos de ocorrências são muito comuns, como, sem dúvida, você pode confirmar. O aroma de bolos ou pães recém-assados, o cloro de uma piscina no verão, a brisa salgada do mar, o café e a chuva são cheiros que fazem com que nossas mentes recuperem lembranças e emoções que há muito tempo julgávamos esquecidas.
A memória é a capacidade do cérebro de compilar, armazenar e recuperar informações com base em experiências passadas. Mas que tipos de experiências são mais facilmente armazenadas? São aquelas ligadas à emoção, sejam elas positivas ou negativas.
Nossas memórias são como uma gaveta sem fundo. A quantidade de informações que elas podem armazenar é infinita, mas nem sempre é fácil acessá-las. Isso ocorre porque nossos cérebros guardam coisas que consideram menos importantes em um determinado momento. Quanto mais escondida estiver uma informação, mais difícil será recuperá-la.
Diversos estudos científicos tentaram descobrir como podemos recuperar memórias e sensações do passado por meio de um cheiro específico. Isso é conhecido como memória olfativa.
Uma linha direta para a memória emocional
O sentido do olfato está fortemente conectado a diferentes áreas do cérebro, como o sistema límbico e o córtex orbitofrontal. O primeiro é essencial para criar respostas emocionais aos odores, enquanto o segundo ajuda a identificá-los e distingui-los, além de vinculá-los a experiências e memórias específicas.
Antes de chegar ao córtex cerebral, as informações dos outros sentidos devem passar primeiro por um sistema de controle, o tálamo. O sentido do olfato, entretanto, tem uma passagem VIP e desvia do tálamo para conectar-se diretamente aos circuitos de memória do cérebro, localizados no hipocampo.
Por esse motivo, um cheiro familiar ativa as mesmas áreas do cérebro relacionadas à memória emocional. De fato, as memórias induzidas pelo cheiro tendem a estar conectadas a experiências passadas com maior significado emocional do que outros sentidos.
Perda do olfato, um sinal de doença neurológica
Assim como outros sentidos, nosso olfato parece diminuir à medida que envelhecemos, mas isso também pode estar ligado a vários distúrbios. Muitos de nós experimentamos isso em primeira mão durante a pandemia de Covid-19, quando milhões de pessoas perderam o olfato. Para a maioria, foi algo temporário; mas, para alguns, foi permanente.
Curiosamente, muitos distúrbios ligados à perda do olfato são neurodegenerativos, em que um dos sintomas associados é a perda de memória.
É significativo que essa deterioração do olfato possa preceder outros problemas, pois pode ser usada para prever quase 70 condições psiquiátricas e neurológicas. O declínio contínuo da capacidade de detectar odores anuncia a perda de massa cinzenta – composta principalmente de neurônios – no hipocampo à medida que o Comprometimento Cognitivo Leve (CCL) se instala e, posteriormente, progride para a doença de Alzheimer.
De fato, o declínio do olfato pode prever se indivíduos com CCL desenvolverão Alzheimer no futuro. Mas isso não ajuda apenas a detectar a demência: também pode ser um sinal de disfunção cognitiva e precede ou se desenvolve junto com uma ampla gama de condições, como a doença de Parkinson, a demência por corpos de Lewy, a doença de Creutzfeldt-Jakob, o alcoolismo e a esquizofrenia.
Ginástica olfativa para reabilitar sua memória?
No caso de pessoas que sofrem de doenças neurológicas, como Alzheimer ou Parkinson, a ausência de estímulo olfativo no cérebro pode, na verdade, causar a piora de outros sintomas. De fato, vários estudos estabeleceram uma conexão entre um forte senso de olfato e um menor risco geral de mortalidade.
Consequentemente, nos últimos anos, tem havido interesse em determinar o potencial terapêutico dos aromas para estimular e reabilitar a memória em pacientes com distúrbios neurológicos.
As informações disponíveis até o momento sugerem que há uma conexão. O enriquecimento olfativo – cheirar uma variedade de aromas diferentes – pode reverter a perda de olfato causada por uma infecção, traumatismo craniano, Parkinson e envelhecimento. Essa melhora está associada a um aumento da capacidade cognitiva e de memória.
O método para essa forma de terapia não poderia ser mais simples: os resultados são obtidos expondo as pessoas diariamente a vários aromas. Um estudo recente sustenta a ideia de que duas horas por noite, durante seis meses, são suficientes para melhorar a função da memória.
Obviamente, são necessárias mais pesquisas para concluir definitivamente que a estimulação olfativa regular ajuda a proteger o cérebro e a evitar o declínio ou a deficiência cognitiva.
Enquanto isso não acontece, voltarei à carpintaria do meu pai, pensando nas palavras de Marcel Proust: "O perfume é a última e melhor reserva do passado, aquela que, quando todas as nossas lágrimas secam, pode nos fazer chorar novamente."
*José A. Morales García é pesquisador científico em doenças neurodegenerativas e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Complutense de Madrid (UCM).
Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site The Conversation.
Fonte:https://revistagalileu.globo.com/sociedade/comportamento/noticia/2023/10/por-que-alguns-cheiros-nos-remetem-a-emocoes-e-memorias-cientista-explica.ghtml
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