IA decifra 'voz interior' do cérebro e permite que pacientes que não falam voltem a se comunicar
Computador treinado com implantes cerebrais consegue traduzir palavras imaginadas por pessoas com esclerose lateral amiotrófica (ELA) e reacende debate sobre a privacidade da mente
Por
Renata Turbiani
15/08/2025 10h35 Atualizado há 2 horas
Há muito tempo, cientistas buscam uma maneira de devolver a voz a pessoas silenciadas por doenças como a esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou lesões cerebrais graves. Agora, um estudo publicado na revista Cell aproxima essa ideia da realidade ao mostrar que é possível traduzir palavras e frases pensadas pelas pessoas a partir da atividade elétrica do cérebro.
O avanço, segundo o The New York Times, foi obtido no âmbito do BrainGate2, ensaio clínico de longa duração que já permitiu a pacientes como Casey Harrell, diagnosticado com ELA, se comunicar novamente usando implantes cerebrais.
Em 2023, após perder a clareza da voz, Harrell recebeu quatro conjuntos de eletrodos no córtex motor esquerdo, região que se torna ativa quando o cérebro emite comandos para os músculos produzirem a fala.
Um computador registrou a atividade elétrica dos implantes enquanto Harrell tentava dizer palavras diferentes. Com o tempo, e com a aplicação de inteligência artificial, esse computador previu quase 6.000 palavras, com uma precisão de 97,5%. Em seguida, as palavras foram sintetizadas usando a voz do paciente com base em gravações feitas antes de ele desenvolver ELA.
Mas esse e outros casos trouxeram um dilema ético: uma máquina poderia gravar mais do que as pessoas realmente queriam dizer? Poderia espionar a voz interior deles?
"Queríamos investigar se havia o risco de o sistema decodificar palavras que não deveriam ser ditas em voz alta", disse Erin Kunz, neurocientista da Universidade Stanford e autora do novo estudo, ao Times.
Ela e seus colegas também se perguntaram se os pacientes poderiam, de fato, preferir usar a fala interior, já que notaram que Harrell e outros sentiam fadiga ao tentar falar. "Se pudéssemos decodificar isso, poderíamos evitar o esforço físico. Seria menos cansativo, então eles poderiam usar o sistema por mais tempo”, acrescentou a pesquisadora.
Mas não estava claro se seria de fato possível decodificar a fala interior. E também não havia um acordo sobre o que é "fala interior".
"Muitas pessoas não têm ideia do que você está falando quando diz que tem uma voz interior", comentou Evelina Fedorenko, neurocientista cognitiva do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), que não esteve envolvida no estudo. "Elas dizem: 'Sabe, talvez você devesse consultar um médico se estiver ouvindo palavras na sua cabeça.'"
Kunz e seus colegas decidiram investigar. Eles deram aos participantes da pesquisa sete palavras diferentes, incluindo "pipa" e "dia", e compararam os sinais cerebrais quando tentavam dizer as palavras e quando apenas imaginavam dizê-las.
O que se observou foi que imaginar uma palavra produziu um padrão de atividade semelhante ao de tentar dizê-la, mas o sinal foi mais fraco. Nesta etapa, o computador teve um desempenho satisfatório ao prever em qual das sete palavras os participantes estavam pensando.
Mais tarde, a máquina foi submetida a mais treinamentos, desta vez especificamente em fala interior, e seu desempenho melhorou significativamente, de acordo com o Times. Na prática, isso quer dizer que quando os participantes imaginavam dizer frases inteiras, como "Não sei há quanto tempo você está aqui", o computador conseguia decodificar com precisão a maioria ou todas as palavras.
Apesar do bom desempenho, Kunz enfatizou que ele não é suficiente para permitir que as pessoas mantenham conversas. "Os resultados são, mais do que qualquer outra coisa, uma prova inicial de conceito", enfatizou.
Mas ela está otimista de que a decodificação da fala interior pode se tornar o novo padrão para interfaces cérebro-computador. Em testes mais recentes, cujos resultados ainda não foram publicados, ela e seus colegas melhoraram a precisão e a velocidade do computador. "Ainda não atingimos o teto", complementou.
Quanto à privacidade mental, os pesquisadores encontraram alguns motivos para preocupação, pois, às vezes, foi possível detectar palavras que os participantes não estavam imaginando.
Por exemplo, em um teste, os participantes viram uma tela com 100 retângulos e círculos rosa e verde. Eles, então, tiveram que determinar o número de formas de uma cor específica. E à medida que trabalhavam no problema, o computador às vezes decodificava a palavra para um número. Na prática, os participantes contavam as formas silenciosamente, e o computador os ouvia.
Os responsáveis pelo estudo exploraram maneiras de impedir que a máquina “espionasse” pensamentos privados, e chegaram a duas soluções possíveis.
Uma seria decodificar apenas a tentativa de fala, bloqueando a fala interior. O novo estudo sugere que essa estratégia pode funcionar, já que os dois tipos de pensamento são diferentes o suficiente para que um computador possa aprender a diferenciá-los.
Para pessoas que preferem se comunicar por meio da fala interior, a opção seria uma senha interna para ativar e desativar a decodificação. A senha teria que ser uma frase longa e incomum, e os pesquisadores decidiram por "Chitty Chitty Bang Bang", o nome de um romance de 1964 de Ian Fleming, bem como de um filme de 1968 estrelado por Dick van Dyke.
O Times detalha que uma participante de 68 anos com ELA imaginou dizer a frase junto com uma variedade de outras palavras, e o computador aprendeu a reconhecê-la com 98,75% de precisão, e decodificou sua fala interior somente após detectar a senha.
“Este estudo representa um passo na direção certa, eticamente falando”, disse Cohen Marcus Lionel Brown, bioeticista da Universidade de Wollongong, na Austrália, que não esteve envolvido no trabalho. “Se implementado fielmente, daria aos pacientes ainda mais poder para decidir quais informações compartilhar e quando.”
Fonte:https://epocanegocios.globo.com/inteligencia-artificial/noticia/2025/08/ia-decifra-voz-interior-do-cerebro-e-permite-que-pacientes-que-nao-falam-voltem-a-se-comunicar.ghtml
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