'NÃO EXISTE MEDICAMENTO IGUAL NO MUNDO', CONTA PESQUISADORA SOBRE DROGA QUE DEVOLVEU MOVIMENTOS APÓS LESÃO DA MEDULA
‘Não existe medicamento igual no mundo', conta pesquisadora sobre droga que devolveu movimentos após lesão da medula
Polilaminina teve resultados promissores entre humanos e cães que participaram de um estudo piloto; liberação da Anvisa é aguardada para avançar nos testes clínicos
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— Rio de Janeiro
30/09/2025 03h01 Atualizado há um dia
Recentemente, o nome de Tatiana Sampaio passou a ser conhecido por todo o país. A pesquisadora, chefe do Laboratório de Biologia da Matriz Extracelular, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgou pela primeira vez os resultados iniciais de um trabalho que teve há 27 anos. Eram as primeiras evidências de testes em cães e humanos com a polilaminina, tratamento experimental que busca devolver movimentos após uma lesão medular.
A euforia em torno da notícia não foi à toa, hoje não existem alternativas para casos do tipo, que deixam muitos pacientes com paraplegia ou tetraplegia. A molécula, sintetizada a partir de uma proteína extraída de placentas, surge como uma opção simples, barata e, mais importante, com indícios fortes de que é eficaz. O estudo inicial com humanos foi pequeno, somente 8 voluntários, mas em alguns deles reverteu completamente a perda dos movimentos.
Ao GLOBO, Tatiana explica o que é a polilaminina, o que os testes mostraram até agora e quais os próximos passos para os estudos maiores, necessários para comprovar a eficácia e solicitar no futuro aprovação de uso à Anvisa. Além disso, fala sobre quanto tempo deve levar até um cenário em que, se tudo der certo, a ciência brasileira terá sido responsável por uma descoberta pioneira no mundo.
— Dependendo do resultado, é possível até começar a disponibilização do medicamento antes da fase 3 devido às características de ser uma doença rara, muito grave e para a qual não temos alternativas hoje. Depois da autorização da Anvisa, acredito que a fase 1-2 dos testes levará 2 anos numa estimativa otimista — diz a pesquisadora.
O que é a polilaminina e como ela foi descoberta?
A polilaminina é um polímero de uma proteína chamada laminina. Polímero significa que são várias unidades dessa proteína ligadas entre si. A laminina é uma proteína natural que temos no corpo durante toda a vida, por isso pode ser isolada das placentas. Ela tem várias funções, uma delas de estimular a regeneração dos axônios, que são as estruturas dos neurônios danificadas numa lesão medular.
No interior da coluna vertebral tem um canal por onde passa a medula espinhal, que é parte do sistema nervoso central e tem a função de fazer a comunicação entre o cérebro e o resto do corpo. Quando ocorre uma lesão ali, essa comunicação é perdida. Então, a pessoa não consegue levar a informação sobre o seu desejo de fazer um movimento para os músculos, e também não consegue ter informação sensorial.
Já se sabia há muitos anos que a laminina tem essa função de estimular o crescimento dos axônios. Só que, quando usávamos apenas ela, não funcionava. O que descobrimos foi uma forma de fazer a proteína ficar mais efetiva com a polimerização, que é fazer com que várias unidades dela fiquem juntas, associadas. Com isso, ela se torna mais estável e potente. Restava testar se isso funcionaria na vida real.
Quais foram os primeiros testes?
A primeira coisa que fizemos foi estudar um modelo de ratos com lesões medulares, injetando a polilaminina no local da lesão para ver se acontecia uma regeneração dos axônios e retorno dos movimentos. Vimos as duas coisas. A partir daí, partimos para estudos com cães e com pessoas. Se considerarmos desde o momento em que descobrimos essa forma de fazer a polilaminina mais potente, até agora, são 27 anos de pesquisa.
Como foi o estudo piloto em humanos?
O estudo piloto foi feito com 8 pacientes, tratados entre 2018 e 2021. A aplicação foi feita em hospitais do Rio, principalmente no Azevedo Lima, em Niterói, e no Souza Aguiar, na capital. Todas em lesões na fase aguda, em até 72 horas. Incluímos pessoas com lesões muito diferentes, desde por arma de fogo até as mais compressivas, que são menos graves. Vimos resultados positivos, embora muito diferentes. Temos casos como o do Bruno, que tem aparecido na mídia, que recuperou totalmente os movimentos, e outros em que a recuperação foi bem menor.
Como é a aplicação?
A aplicação é feita diretamente na medula espinhal. No estudo, o protocolo foi fazer durante a cirurgia, porque na fase aguda, logo após a lesão, quase todos os pacientes precisam operar. Mas é possível fazer também sem cirurgia. Com um raio-x, por exemplo, você localiza o local exato da lesão e faz uma injeção percutânea, em que a agulha passa através da pele.
Acredita que terá um efeito também para casos antigos?
Nosso desejo é que possa expandir para crônicos. Pensando no mecanismo, é uma possibilidade que faz sentido. Porque é uma terapia que vai estimular a regeneração dos axônios, então, onde houver preservação do neurônio, é possível estimular que seus axônios cresçam novamente. Mas isso precisa ser testado.
Por isso, em paralelo, estamos fazendo estudos em cães que sofreram lesões naturais já há mais tempo para ver se tem um efeito. Existe uma limitação, esses testes são muito caros, então temos que escolher muito bem o que fazer. Nesse primeiro momento, optamos por associar a polilaminina com dois outros tratamentos que podem potencializar o efeito dela em casos crônicos. Um deles é uma droga que vai dissolver a cicatriz que fica no local, porque ela inibe a regeneração dos neurônios. Em um outro grupo de animais, combinamos a polilaminina com uma outra molécula que tem a capacidade de atrair os neurônios através da lesão.
Nos dois casos, funcionou da mesma forma, vimos que todos os animais tratados tiveram alguma melhora. Mas não conseguimos estimar se uma estratégia foi melhor que a outra. Também não conseguimos ver se só a polilaminina sozinha teria efeito. Então nossa próxima etapa é buscar isso e entender qual seria o melhor protocolo para estudos em humanos.
O mais lógico seria funcionar melhor na fase aguda, porque teríamos dois efeitos, a capacidade de regeneração e a neuroprotetora antes da morte progressiva que acontece dos neurônios depois da lesão. A polilaminina é uma proteína multivalente, tem várias funções em diferentes tecidos, uma delas é a neuroproteção.
Quando começaram a perceber os resultados positivos em pacientes humanos, foi uma surpresa?
Tínhamos uma expectativa e uma confiança que haveria uma melhora, mas realmente foi difícil de acreditar. Alguns casos nos impressionaram muito, não esperávamos que o resultado fosse ser tão relevante. E é um tratamento que tem, em alguma medida, funcionado para diferentes tipos de lesão. Isso dá uma robustez aos resultados.
Existe algum outro medicamento semelhante hoje no mundo?
Não existe nenhum medicamento aprovado para regenerar os axônios, a polilaminina é o que temos de mais avançado. Temos outras drogas para lesão medular em testes, mas funções um pouco diferentes, geralmente mais voltadas para o efeito de neuroproteção e para bloquear o processo de cicatrização.
Há também pesquisas buscando reposição do tecido, como por células-tronco, ou terapias com materiais sintéticos. Todas essas possibilidades estão mais ou menos no mesmo estágio de testes da nossa.
Qual o momento atual do estudo?
Estamos aguardando liberação para refazer o estudo clínico agora com a aprovação da Anvisa para uma fórmula que poderá ser produzida em larga escala. No estudo piloto, usamos uma polilaminina de uso em laboratório, que não é produzida dentro dos padrões necessários para um medicamento. Mas o laboratório Cristália se interessou pelo projeto e investiu em produzir como remédio para agora ser testado. É a mesma substância, mas a produção é diferente, com mais controle de qualidade, por exemplo. Tudo isso precisa ser analisado pela Anvisa para autorizar novos testes em humanos.
Os testes serão iguais aos de outros medicamentos, divididos em fases 1, 2 e 3, ou há alguma peculiaridade?
Tem a diferença de podermos juntar a fase 1 com a 2. Porque a 1 geralmente é feita com pessoas saudáveis, ou seja, que não têm a doença, para ver se o medicamento é seguro. Mas como é uma injeção intramedular, não podemos testá-lo em pessoas saudáveis, não seria ético. Então fazemos o que chamamos de fase 1-2, testando doses diferentes. E acredito que, dependendo do resultado, é possível até começar a disponibilização do medicamento antes da fase 3 devido às características de ser uma doença rara, muito grave e para a qual não temos alternativas hoje.
Existe alguma previsão de quanto tempo isso deve levar?
Depois da autorização da Anvisa, acredito que a fase 1-2 levará dois anos, porque vão ser dois estudos pequenos para testar duas doses diferentes e, em cada um deles, o paciente é acompanhado por um ano. E temos ainda o tempo do recrutamento de voluntários, que leva geralmente metade de um ano. Então 2 anos é uma estimativa otimista.
Como é a parceria com o laboratório Cristália?
Começamos a conversar com eles em 2019, e a cooperação com a UFRJ foi oficializada em 2021. Eles vão ter o direito de comercializar a polilaminina se for aprovada, mas a UFRJ é partícipe, então tem direito a royalties.
É praxe na comunidade científica aguardar os resultados dos estudos clínicos para divulgar um medicamento experimental de forma ampla. Por que a decisão de compartilhar os resultados da pesquisa agora, mesmo antes dos estudos completos?
Críticas de que ainda não temos um medicamento disponível e que a divulgação desses resultados agora pode gerar expectativas são válidas. Mas esperamos um tempo para divulgar, o caso do Bruno, por exemplo, foi em 2018. Queríamos caminhar mais antes, e o fato de termos publicado agora o estudo com cães, em que conseguimos demonstrar que de fato há um efeito clínico, nos fez perceber que chegamos a um ponto em que é importante compartilhar. Porque no caso dos humanos, o desenho do estudo não permite essa confirmação, então ainda estávamos vendo se era seguro e comparando com a história natural da lesão.
O que a pesquisa revela sobre a importância da ciência brasileira?
Esse tipo de estudo, que se inicia na pesquisa básica, depois passa para a aplicada e depois para uma mais tecnológica, que é a fase atual, nasce na universidade. Então, para termos isso, é importante que existam investimentos sólidos e permanentes nas universidades públicas, que são as que fazem a maior parte da pesquisa no Brasil. O setor privado nunca faria um investimento de 27 anos numa pesquisa inicial que não se sabia em que ia dar.
Mas também acho importante que as próprias universidades e os sistemas de financiamento público tenham um olhar mais voltado para o desenvolvimento tecnológico. Não adianta só financiar uma pesquisa que não tenha nenhum compromisso com o desenvolvimento produtivo do país. O Brasil tem um certo atraso na pesquisa, mas tem um atraso maior ainda na transferência do conhecimento para o setor produtivo.
Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/09/30/nao-existe-medicamento-igual-no-mundo-conta-pesquisadora-sobre-a-droga-que-deu-movimentos-ao-corpo-apos-lesao-da-medula.ghtml
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